terça-feira, 16 de julho de 2024

APOTEOSE

 Apoteose

O homem levanta da cama de manhã, de uma cama amassada e com uma janela com uma cortina rasgada. Vai até a sala e olha pra sua xícara velha. Ele suspira em desapontamento enquanto faz um café com pó de café já usado.

Se voce leu até aqui, criou toda uma cena na sua cabeça com apenas poucas palavras e criou talvez teorias sobre o passado desse homem. Eu não descrevi um rosto, mas você deu a ele um rosto. Não descrevi a cor da cortina, nem a roupa que ele usava, mas isso voce também criou.

Esse é poder das palavras.

Um escritor não tem um poder. Ele ou tem ou não tem habilidades para despertar um poder no livro. Apesar de dizer que ele pode criar universos e realidades, isso é uma coisa dita para fazer os escritores terem algum valor para dar a sua vida.

O escritor imagina, algo que qualquer um pode fazer. Mas é como ele vai colocar esse sonho coberto de delírio servido com uma xícara de loucura no papel que importa. Existem mundo afora diversas histórias que tem um grande potencial, mas foram estragadas pela narrativa, ausência de um final decente ou quaisquer outros erros do escritor. Antes que me apedrejem, não digo que o escritor é inútil, afinal sendo eu próprio escritor compreendo que o autor tem o papel de imaginar, deixar e manter interessante, criar uma narrativa sem furos e prestar atenção na gramática.

 Mas ainda assim “não cria um universo”. A realidade alternativa que existe em livros e poemas só começa a existir quando uma pessoa pede permissão ao livro para lê-lo, como para tirar a virgindade do conhecimento ainda não solto na terra que existe em cada livro.

Quando a primeira palavra é lida, toda a realidade é desfeita, o tempo não passa de uma lenda do passado e nos vemos imersos em outro tempo e outra cultura, como um fantasma que tudo vê e tudo sabe, ou uma pessoa curiosa que encontra arquivos velhos ou qualquer que seja a posição que o livro nos dá.

Quando nos vemos retirados das ondas brancas listradas de preto do livro, ficamos atordoados pela mudança de realidade e tendo que se acostumar com a mortalidade que o tempo nos dá de novo.

Os livros e o leitor são deuses escondidos, que atravessam portas secretas e veem o que os outros não conseguem ver.

Uma pessoa e um livro conseguem viver sem os escritores, mas ambos necessitam da relação simbiótica que tem um com outro para terem seus poderes.

Um livro pode mudar uma pessoa, mas as pessoas não podem mudar um livro.

Você tem poder leitor, crie e mude a realidade ao seu bel-prazer, guiado pelo seu livro guia. Sonhe, deseje, transforme. Mude o mundo com sua ideia.

Agora que terminou o texto, não esqueça do homem cansado. Dê a ele uma uma vida, uma pessoa, uma realidade. Não abandone a realidade que voce criou.


Marshall


sábado, 18 de maio de 2024

Almanaque das Coisas que Nunca Existiram - Capítulo 01: Solidão e insolidez

  Sobre meu peito, um peso constante e doloroso, minhas costas suadas se desgrudam da cama e aquela sensação de que sempre estou sendo observado vem novamente... Acho que tive um mal sonho. Aos poucos recobro meus sentidos e me acostumo com a claridade do quarto, o inútil esqueceu a janela aberta na última noite, as coisas parecem aos poucos irem para seus lugares e as massas de sombras tomam forma em alguns poucos móveis, a primeira das coisas é uma velha TV de tubo. Ela repousa sobre alguma coisa que um dia foi um caixote de madeira, ao lado dela, no chão, uma coleção de revistas e livros velhos e úmidos. A velha cama de metal range sob mim ao me levantar, vou até a cozinha enquanto a TV fala de alguma receita que leva carne de porco e molho de tomate, não tenho nenhum dos dois. Tudo parece no lugar, o fogão de duas bocas engordurado que consegui num ferro velho, a mesa de bar sem uma das pernas que consegui depois de uma briga e bons dias fazendo bico até pagar os estragos, até mesmo a geladeira quebrada que mais ronca do que gela está lá, ao lado do fogão... Dia 27 de Outubro. Bem, deve ser isso, a última vez que marquei no calendário era um sábado e já faz quase uma semana... Não há muita coisa para um humano comer lá dentro da geladeira. Pego os bolos de ovos quase mofados e os como ali mesmo, o sabor é doce, apesar de estarem secos para um caralho. Depois da minha refeição de barata eu tranco a porta e me viro pra sala, uma coisa chama minha atenção no canto do olho, uma sombra estranha, uma forma familiar... Achei que a essa altura todas já tivessem virado móveis. Me viro em direção a TV e o programa de agora é um jornal qualquer, eu já desisti de adivinhar o canal há muito tempo... No lugar da sombra há apenas um retrato... No jornal notícias de pessoas em coma profundo, aquele velho documentário mórbido com um fio de esperança, aquele velho cassino que sempre tem seus espectadores. Me aproximo da janela para fechá-la, lá embaixo, na rua, as pessoas parecem distantes, distantes umas das outras por mundos de diferença... É como se cada um fosse uma nota destoante numa melodia melancólica... Atravessando umas às outras sem nunca se tocarem de fato... Como se suas formas físicas pouco fossem mais do que um espectro de uma ideia há muito abandonada por um deus insone. A visão daquelas pessoas cinzas sobre o asfalto monocolor se encerra junto da janela... Escuridão novamente, como se o mundo lá fora pouco fosse mais do que um eco distante, do que o brilho fraco da morte de um sol espremido como uma laranja passando pelas frestas de uma velha porta. É a hora perfeita para um banho.

    A água cai, seu eco é repetido pelas paredes do banheiro, pelas ondas no piso desnivelado do box sujo, pelo chiado inconstante nos meus tímpanos… Respiro fundo antes de entrar no chuveiro… Há uma dezena de minutos que falho… Assim como falhei agora. Sob o frio contato da pele com a água meu corpo tem o impulso de recuar, como se a perda de temperatura pudesse fazer cessar o coração, como se coágulos se formar-se-iam sob a pele, lhe dando uma lividez cadavérica. Novamente respiro fundo e fecho os olhos. Entro. A água se derrama em volumes disformes e irregulares sobre minha cabeça, sinto meu cabelo molhado grudar-se e escorrer sobre meu rosto e minha nuca. Sinto algo mais me observando. A irreal razão do meu persistente recuo. A sensação constante de meus demônios à espreita… Suspirando ameaças inaudíveis. O banho levou poucos, porém torturantes, minutos. Mal o terminei e o alarme tocava, era hora de ir ao trabalho. Ao Almanaque das Coisas que Nunca Existiram.


terça-feira, 19 de março de 2024

A CRIAÇÃO DE UM MONSTRO.

                                                  

É impossível para um humano, matar outro humano.

Antes de me julgar, com relatos de guerras e assassinatos, permita-me concluir.

O ser humano busca igualdades e diferenças em sua vida desde sempre. buscamos iguais em pensamento, moda, humor, relacionamentos, etc. E diferenças como forma de se destacar, superioridade, preconceitos e ideias. 

E uma dessas formas, é o conceito do igual enquanto ser humano.

Se lhe entregasse uma arma, e dissesse para matar alguém aleatório na rua, haveriam 3 situações:

• você aceitaria e mataria sem duvidar.

• você ficaria confuso e não o mataria.

• você me perguntaria por qual motivo.

Em todas as situações, você avaliou o conceito de igual inconscientemente.

•Na primeira, você o desconsiderou como ser humano e o matou

•Na segunda, você o considerou um igual e não o quis matar.

•Na terceira, você buscava um motivo para o desumanizar.

Em resumo, é necessário que para um humano mate outro, deve haver uma ausência de humanidade, seja no outro ou em si mesmo.

Em guerras, é muito comum que um dos lados do conflito demonize o outro lado, tal qual a Alemanha na segunda guerra. Não cabe a mim julgar crimes de guerras e ódio, mas acredito que nos filmes de guerras americanos, antes dos mocinhos matarem o lado inimigo, sempre é mostrado uma personalidade má ou atos maldosos por parte do antagonista, como forma do público o desumanizar e se sentir feliz com sua morte.

Agora, caso um personagem gentil e amigo do protagonista, morra, causa tristeza. Pois o personagem é empático e o público se liga com ele emocionalmente.

O preconceito é um bom exemplo disso. Classificar indivíduos em níveis de humanidade baseado em características físicas e personalidades, e essa classificação distingue seu lugar na sociedade e autoriza atos antiéticos e imorais por parte dos outro membros sociais "Humanos" , tais como: escravidão, assédio, xingamentos, humilhações, violência física, entre tantos outros crimes.

O ser humano, antes de tudo, é um animal social e empático, que se une e se separa em grupos à seu bel-prazer, humanizando e desumanizando grupos egoistamente pelos seus ideais, preconceitos e ideias.

É impossível que um humano mate outro humano, pois o monstro sempre é ou o que mata ou que se deseja que seja morto.







Marshall.







domingo, 17 de março de 2024

Blade Runner - O Caçador de Andróides: Versão Final (SEI LÁ QUANDO SAIU, TEM UMAS 7 VERSÕES ESSE FILME) - Uma breve dissertação

        Blade Runner, um clássico do gênero Cyberpunk que inspirou toda uma cultura de jogos, filmes e RPGs teve uma sequência de lançamentos/correções que dariam por si só um bom artigo abordando todas elas, suas diferenças e motivos se existirem. Todavia, não é sobre isso que eu quero tratar. Deixando de lado todo o decoro acadêmico ou formal de apresentar uma biografia sobre o assunto, vamos ao que interessa.

  Não é possível discorrer sobre Blade Runner e fazer paralelos com os temas debatidos em aula sem antes falar sobre a estética do mundo e dos personagens presentes nele. Há de se reparar que no filme em questão, e em outras diversas obras do gênero, a completa (ou quase isso) ausência dos elementos que representam a natureza, como animais, árvores vivas etc. Há alguns casos em que até mesmo a presença de madeira morta real é rara e considerada luxo, em “O caçador de andróides” por exemplo, não há um animal vivo que seja real e não um replicante. Tudo isso, somado com a estética lúgubre e futurista, traz à tona um mundo que há muito tempo abandonou todas as responsabilidades para com a natureza e as gerações futuras. A própria decadência do cenário se reflete em todos os aspectos nos personagens, sejam eles físicos ou morais, não é raro de se ver personagens com partes do corpo trocadas por componentes cibernéticos ou integrados a eles, e na moral essa decadência e descaso se reflete na forma como os conflitos ético-sociais foram “resolvidos” e aceitos pela sociedade. Dito isso, vamos por partes, discorreremos sobre a estruturação da cidade e por fim adentraremos os conflitos éticos no tocante ao tratamento dos  replicantes.

Há uma ideia de cidade que predomina no gênero cyberpunk, essa estrutura se reflete aqui em Blade Runner. A cidade em Blade Runner é dividida, de todas as formas, sejam elas sociais, econômicas ou ideológicas, e essa divisão se reflete na estrutura da cidade em si. A metrópole em que o filme se passa é extremamente densa e vertical, a parte baixa é também a parte mais pobre e marginalizada da cidade, não por acaso é também a área mais suja e escondida, há a presença de uma noite eterna, as sombras são constantes, uma metáfora que denuncia que o sol, apesar do ditado, não nasce para todos, ao mesmo tempo que cutuca na ferida ao fazer um paralelo com a realidade, onde ao invés de se resolver os problemas eles são escondidos nas sombras. Em contraste temos as regiões média e alta da metrópole, a camada média é um verdadeiro aglomerado de edifícios comerciais outdoors, é levado ao pé da letra a ideia de superpopulação e tráfego pesado, aqui a densidade é tanta e a individualização da humanidade é tão exacerbada que em momentos de perseguição e tiroteio as pessoas só demonstram o mínimo de reação ao serem empurradas, “O caçador de andróides" eleva ao auge a corrida dos ratos, onde tudo que importa é seguir o fluxo de alienação e consumo descontrolado, sem se preocupar com o que acontece ao redor. E tal qual ratos os humanos se multiplicaram tanto que até mesmo os céus sofrem com trânsito pesado. O que nos leva à alta camada da sociedade, representada pela única parcela que tem o privilégio do sol, quando este não está coberto pelas densas nuvens de poluição. Parcela esta que se estende até fora da metrópole, onde o líder da maior corporação controla tudo, sem sofrer com a opressão de fazer parte diretamente do todo, como uma figura superior. É evidente que a estrutura física da cidade reflete e dialoga diretamente com a estrutura social e econômica dela, fazendo de maneira mestra o paralelo com a sociedade hierarquizada vigente desde antes da época de lançamento do filme até hoje.

Com isso em mente, podemos seguir em frente e discorrer sobre os replicantes e o que eles representam. A forma como os replicantes são tratados é justamente o resultado da distorção ou até mesmo ausência do debate ético sobre a consciência e como ela deve ser representada no que diz respeito à ética e às leis. A quase completa ausência de animais e o desprezo pelos replicantes são reflexos de uma sociedade individualista e instrumental. Onde o que não é útil não merece existir e em que apenas os humanos são dotados de direitos e os humanos ricos de direitos e privilégios. A ausência de responsabilidade para com os replicantes e seu sofrimento chega a ser análoga ao período escravocrata do Brasil, em que os escravos nem sequer eram tratados como pessoas. Essas situações seriam evitadas se no universo do filme o debate sobre as I.A.  tivesse aparecido muito antes dos conflitos inerentes à convivência desses seres com os humanos. Vale ressaltar a fala de uma da personagens, uma replicante, a fala é uma citação a Descartes, “penso logo existo” dito pela replicante, uma classe completamente desprovida de direitos, faz confronto direto com a ideia distorcida de que muitos se utilizam para destituir os animais do direito de uma condição de vida digna, mostrando mais uma vez as diversas camadas e debates que o filme abrange além da estética futurista.

O universo de Blade Runner é não apenas um futuro distópico alternativo ao nosso presente, mas também uma crítica ferrenha a nossa sociedade e uma representação dos problemas que a negligência dos debates éticos e a individualização podem provocar numa sociedade, a adoecendo ao poucos, tanto do ponto de vista sociocultural quanto estrutural. O estado de reflexão em que o filme nos coloca é em si parte da solução, pois não existe debate sem percepção do problema e reflexão sobre ele.



Habso Grobbi

terça-feira, 12 de março de 2024

Laric do Deserto - I Relato de um Comerciante

     Não faz nem uma semana desde que o vi. O sol castigava os delgados ombros daquele jovem que, trajado apenas de um manto encardido e calçado de velhos sapatos de bico fino rasgados nos calcanhares, caminhava penosamente, mal suportando o saco em seus ombros, que balançava largamente de um lado a outro fazendo seu interior tilintar sonoramente. O rapaz seguia em direção ao Oásis dos Venais, mas com certeza não sobreviveu o suficiente para chegar lá. Eu mesmo vinha de lá fazia horas e, mesmo a camelo estava exausto da viagem, simplesmente não tinha como ele sobreviver. Mas que vá ao inferno esse garoto! Aquilo que ele carregava nas costas que me interessava, sem dúvidas se não era valioso ao menos renderia bons cobres. Minto! Aquele brilho metálico dourado que me cegou as vistas por um momento não era delírio ou miragem coisa alguma, o sujeito tinha às costas riquezas que muitos não viveriam o suficiente pra consumir.

     Vocês não fazem ideia do alívio foi me aproximar e confirmar minhas suspeitas, aquilo sem dúvidas era ouro e eu juraria que o garoto estava a beira da morte. Bastava um corte da minha adaga. Apenas um! E pronto, tudo aquilo seria meu e ninguém me julgaria por isso. Afinal, que me fariam? Todos por aqui são condenados desde o nascimento. Eu tava quase com as mãos no punho da arma quando algo me arremeteu. Não foi o olhar do rapaz, ele prosseguia sem sequer olhar para trás na minha direção. Não... Foi algo muito pior, tanto ouro, tanta ausência de perigo, só podia significar três coisas: Que o rapaz era conhecido de gente importante; que era um demônio de sede insaciável; ou que já aceitara a morte e caminhava apenas para abraçá-la o quanto antes. De uma forma ou de outra, não fazia mal perguntar:

— Saudações, jovem andarilho! O que te faz carregar tamanho fardo?

     Ele não respondeu nada, sequer virou o rosto, era como se tivesse areia nos ouvidos. Mas eu não podia desistir, se o garoto fosse ao menos conhecido de um bem nascido eu tinha tirado a sorte grande.

— Eu posso ajudá-lo, é perigoso prosseguir sozinho. Principalmente com... Isso.

     Sabem. Talvez tivesse sido melhor segui-lo calado, ou talvez ter ido embora sem tê-lo visto. Pois quando apontei praquilo nas costas dele, que era ouro e não delírio ou miragem, ele cessou a marcha e se pôs imóvel como uma estátua. Aquele desequilíbrio de bêbado em alto mar, aquela sensação de morte iminente, aquela promessa de expressão vazia... Tudo! Tudo isso o abandonou e invadiu a mim! Sim, até a promessa da expressão de seu rosto, o maldito finalmente olhara na minha direção. Seu semblante frio e sereno como um lago calmo em noite de lua cheia me petrificou, seus olhos marrons pareciam devorar a luz do sol como num eclipse e essa mesma luz desse sol apagado fazia o castanho de suas íris brilharem vermelho, tal qual a lua de sangue. Naquele momento eu tive certeza de duas coisas aquele rapaz não era bem nascido ou conhecido de gente importante... e tampouco tinha aceitado a morte.



Habso Grobbi


Uma questão de questionar

Todo escritor tem um estilo de escrita ou um tema principal de seus escritos que seguem um padrão. Descobri que meus escritos se diferenciam...