Blade Runner, um clássico do gênero Cyberpunk que inspirou toda uma cultura de jogos, filmes e RPGs teve uma sequência de lançamentos/correções que dariam por si só um bom artigo abordando todas elas, suas diferenças e motivos se existirem. Todavia, não é sobre isso que eu quero tratar. Deixando de lado todo o decoro acadêmico ou formal de apresentar uma biografia sobre o assunto, vamos ao que interessa.
Não é possível discorrer sobre Blade Runner e fazer paralelos com os temas debatidos em aula sem antes falar sobre a estética do mundo e dos personagens presentes nele. Há de se reparar que no filme em questão, e em outras diversas obras do gênero, a completa (ou quase isso) ausência dos elementos que representam a natureza, como animais, árvores vivas etc. Há alguns casos em que até mesmo a presença de madeira morta real é rara e considerada luxo, em “O caçador de andróides” por exemplo, não há um animal vivo que seja real e não um replicante. Tudo isso, somado com a estética lúgubre e futurista, traz à tona um mundo que há muito tempo abandonou todas as responsabilidades para com a natureza e as gerações futuras. A própria decadência do cenário se reflete em todos os aspectos nos personagens, sejam eles físicos ou morais, não é raro de se ver personagens com partes do corpo trocadas por componentes cibernéticos ou integrados a eles, e na moral essa decadência e descaso se reflete na forma como os conflitos ético-sociais foram “resolvidos” e aceitos pela sociedade. Dito isso, vamos por partes, discorreremos sobre a estruturação da cidade e por fim adentraremos os conflitos éticos no tocante ao tratamento dos replicantes.
Há uma ideia de cidade que predomina no gênero cyberpunk, essa estrutura se reflete aqui em Blade Runner. A cidade em Blade Runner é dividida, de todas as formas, sejam elas sociais, econômicas ou ideológicas, e essa divisão se reflete na estrutura da cidade em si. A metrópole em que o filme se passa é extremamente densa e vertical, a parte baixa é também a parte mais pobre e marginalizada da cidade, não por acaso é também a área mais suja e escondida, há a presença de uma noite eterna, as sombras são constantes, uma metáfora que denuncia que o sol, apesar do ditado, não nasce para todos, ao mesmo tempo que cutuca na ferida ao fazer um paralelo com a realidade, onde ao invés de se resolver os problemas eles são escondidos nas sombras. Em contraste temos as regiões média e alta da metrópole, a camada média é um verdadeiro aglomerado de edifícios comerciais outdoors, é levado ao pé da letra a ideia de superpopulação e tráfego pesado, aqui a densidade é tanta e a individualização da humanidade é tão exacerbada que em momentos de perseguição e tiroteio as pessoas só demonstram o mínimo de reação ao serem empurradas, “O caçador de andróides" eleva ao auge a corrida dos ratos, onde tudo que importa é seguir o fluxo de alienação e consumo descontrolado, sem se preocupar com o que acontece ao redor. E tal qual ratos os humanos se multiplicaram tanto que até mesmo os céus sofrem com trânsito pesado. O que nos leva à alta camada da sociedade, representada pela única parcela que tem o privilégio do sol, quando este não está coberto pelas densas nuvens de poluição. Parcela esta que se estende até fora da metrópole, onde o líder da maior corporação controla tudo, sem sofrer com a opressão de fazer parte diretamente do todo, como uma figura superior. É evidente que a estrutura física da cidade reflete e dialoga diretamente com a estrutura social e econômica dela, fazendo de maneira mestra o paralelo com a sociedade hierarquizada vigente desde antes da época de lançamento do filme até hoje.
Com isso em mente, podemos seguir em frente e discorrer sobre os replicantes e o que eles representam. A forma como os replicantes são tratados é justamente o resultado da distorção ou até mesmo ausência do debate ético sobre a consciência e como ela deve ser representada no que diz respeito à ética e às leis. A quase completa ausência de animais e o desprezo pelos replicantes são reflexos de uma sociedade individualista e instrumental. Onde o que não é útil não merece existir e em que apenas os humanos são dotados de direitos e os humanos ricos de direitos e privilégios. A ausência de responsabilidade para com os replicantes e seu sofrimento chega a ser análoga ao período escravocrata do Brasil, em que os escravos nem sequer eram tratados como pessoas. Essas situações seriam evitadas se no universo do filme o debate sobre as I.A. tivesse aparecido muito antes dos conflitos inerentes à convivência desses seres com os humanos. Vale ressaltar a fala de uma da personagens, uma replicante, a fala é uma citação a Descartes, “penso logo existo” dito pela replicante, uma classe completamente desprovida de direitos, faz confronto direto com a ideia distorcida de que muitos se utilizam para destituir os animais do direito de uma condição de vida digna, mostrando mais uma vez as diversas camadas e debates que o filme abrange além da estética futurista.
O universo de Blade Runner é não apenas um futuro distópico alternativo ao nosso presente, mas também uma crítica ferrenha a nossa sociedade e uma representação dos problemas que a negligência dos debates éticos e a individualização podem provocar numa sociedade, a adoecendo ao poucos, tanto do ponto de vista sociocultural quanto estrutural. O estado de reflexão em que o filme nos coloca é em si parte da solução, pois não existe debate sem percepção do problema e reflexão sobre ele.
Habso Grobbi
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