Sobre meu peito, um peso constante e doloroso, minhas costas suadas se desgrudam da cama e aquela sensação de que sempre estou sendo observado vem novamente... Acho que tive um mal sonho. Aos poucos recobro meus sentidos e me acostumo com a claridade do quarto, o inútil esqueceu a janela aberta na última noite, as coisas parecem aos poucos irem para seus lugares e as massas de sombras tomam forma em alguns poucos móveis, a primeira das coisas é uma velha TV de tubo. Ela repousa sobre alguma coisa que um dia foi um caixote de madeira, ao lado dela, no chão, uma coleção de revistas e livros velhos e úmidos. A velha cama de metal range sob mim ao me levantar, vou até a cozinha enquanto a TV fala de alguma receita que leva carne de porco e molho de tomate, não tenho nenhum dos dois. Tudo parece no lugar, o fogão de duas bocas engordurado que consegui num ferro velho, a mesa de bar sem uma das pernas que consegui depois de uma briga e bons dias fazendo bico até pagar os estragos, até mesmo a geladeira quebrada que mais ronca do que gela está lá, ao lado do fogão... Dia 27 de Outubro. Bem, deve ser isso, a última vez que marquei no calendário era um sábado e já faz quase uma semana... Não há muita coisa para um humano comer lá dentro da geladeira. Pego os bolos de ovos quase mofados e os como ali mesmo, o sabor é doce, apesar de estarem secos para um caralho. Depois da minha refeição de barata eu tranco a porta e me viro pra sala, uma coisa chama minha atenção no canto do olho, uma sombra estranha, uma forma familiar... Achei que a essa altura todas já tivessem virado móveis. Me viro em direção a TV e o programa de agora é um jornal qualquer, eu já desisti de adivinhar o canal há muito tempo... No lugar da sombra há apenas um retrato... No jornal notícias de pessoas em coma profundo, aquele velho documentário mórbido com um fio de esperança, aquele velho cassino que sempre tem seus espectadores. Me aproximo da janela para fechá-la, lá embaixo, na rua, as pessoas parecem distantes, distantes umas das outras por mundos de diferença... É como se cada um fosse uma nota destoante numa melodia melancólica... Atravessando umas às outras sem nunca se tocarem de fato... Como se suas formas físicas pouco fossem mais do que um espectro de uma ideia há muito abandonada por um deus insone. A visão daquelas pessoas cinzas sobre o asfalto monocolor se encerra junto da janela... Escuridão novamente, como se o mundo lá fora pouco fosse mais do que um eco distante, do que o brilho fraco da morte de um sol espremido como uma laranja passando pelas frestas de uma velha porta. É a hora perfeita para um banho.
A água cai, seu eco é repetido pelas paredes do banheiro, pelas ondas no piso desnivelado do box sujo, pelo chiado inconstante nos meus tímpanos… Respiro fundo antes de entrar no chuveiro… Há uma dezena de minutos que falho… Assim como falhei agora. Sob o frio contato da pele com a água meu corpo tem o impulso de recuar, como se a perda de temperatura pudesse fazer cessar o coração, como se coágulos se formar-se-iam sob a pele, lhe dando uma lividez cadavérica. Novamente respiro fundo e fecho os olhos. Entro. A água se derrama em volumes disformes e irregulares sobre minha cabeça, sinto meu cabelo molhado grudar-se e escorrer sobre meu rosto e minha nuca. Sinto algo mais me observando. A irreal razão do meu persistente recuo. A sensação constante de meus demônios à espreita… Suspirando ameaças inaudíveis. O banho levou poucos, porém torturantes, minutos. Mal o terminei e o alarme tocava, era hora de ir ao trabalho. Ao Almanaque das Coisas que Nunca Existiram.